domingo, 25 de julho de 2010

O CALVINISMO DE CHICO BUARQUE DE HOLANDA

ATÉ O FIM

Quando nasci veio um anjo safado
O chato de um querubim
E decretou que eu estava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim

"Inda" garoto deixei de ir à escola
Cassaram meu boletim
Não sou ladrão , eu não sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
Mas vou até o fim
 
Eu bem que tenho ensaiado um progresso
Virei cantor de festim
Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso
Em Quixeramobim
Não sei como o maracatu começou
Mas vou até o fim
 
Por conta de umas questões paralelas
Quebraram meu bandolim
Não querem mais ouvir as minhas mazelas
E a minha voz chinfrim
Criei barriga, a minha mula empacou
Mas vou até o fim
 
Não tem cigarro acabou minha renda
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim ?
Eu já nem lembro "pronde" mesmo que eu vou
Mas vou até o fim
 
Como já disse era um anjo safado
O chato dum querubim
Que decretou que eu estava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim

Em 1978, na canção "Até o fim", Chico Buarque de Holanda apresentou, de forma bem humorada, as desventuras de alguém que nunca "deu certo" na vida.

É bastante interessante que, em plena ditadura militar, o autor tenha declarado que um dos motivos pelos quais o personagem não dava certo era por não ser "ladrão" (uma mensagem ainda atual em nosso país de corruptos que "dão certo" impunemente), "bom de bola" (garantia certa de bom salário, em uma sociedade que exalta os profissiionais do entretenimento e paga salários miseráveis a seus principais profissionais), nem aguentar "ouvir clarim" - ou seja, não apoiava a ditadura militar nem dela sabia tirar vantagem.
Todavia, esta música merece atenção pelo viés teológico que Chico Buarque conferiu à narrativa: no fundo, tudo não dava certo porque "um anjo safado, um chato de um querubim", havia determinado que seria assim.

Em resumo, "Até o fim" apresenta o conflito do homem vendo-se como vítima do elemento religioso.

(É discutível se, ao descrever o tal "anjo safado" como o "chato de um querubim", Chico estivesse pensando em Satanás, descrito na Bíblia como um querubim caído: se assim fosse, o autor estaria creditando as mazelas humanas à oposição demoníaca. Todavia, esta parece ser uma alternativa improvável, não pela falta de cultura do autor, que poderia muito bem conhecer esta informação, mas pela suspeita com que o elemento religioso era visto nos anos 60 e 70, especialmente pelas esquerdas mais influenciadas pelo ateísmo do comunismo russo e cubano.)

A mesma temática de "Até o Fim" apareceu, de forma mais ousada, em "Rio 42", também do mesmo autor. Ou seja, 1) somos o que somos porque Deus os anjos assim o quiseram, 2) nossa realidade indica que eles não fizeram o serviço bem feito, 3) logo, Deus, na melhor das hipóteses, está sob suspeita, 4) e a fé não parece ser uma virtude sensata.
Lamento ver um artista tão talentoso nutrir tais sentimentos diante de Seu Criador. O retrato bíblico de Deus  (que certamente mudaria os conceitos de Chico Buarque) o apresenta como o soberano da História, mas não uma criatura caprichosa e mesquinha: ao contrário, o Soberano que rege o Universo o faz com ética, justiça e amor.

Há um ponto positivo, porém, que desejo destacar em "Até o Fim": mesmo apresentando um personagem que é "vítima" dos desígnios divinos e entra em conflito com a realidade religiosa, a canção apresenta a rejeição do fatalismo: mesmo com tudo contra, seu personagem vai "Até o Fim", e não entrega os pontos jamais.

Muitos cristãos, sabendo do domínio soberano de Deus e de Seu cuidado como Universo e com a História, desenvolvem uma visão fatalista da vida, e usam estas verdades como uma espécie de isenção à  ação, desculpando assim sua omisão ("minha vida está assim porque Deus quer"): cristãos assim esquecem que Deus cumpre seus propósitos na Terra através de nossas ações responsáveis.

Como Joabe bem sintetizou a questão: "Sê forte, pois; pelejemos varonilmente pelo nosso povo e pelas cidades de nosso Deus; e faça o Senhor o que bem lhe parecer". (2.º Samuel 10.12)

Nós também, como agentes de Deus, temos o dever de sermos agentes de transformação da realidade (em nós e ao nosso redor), e o conhecimento da soberania de Deus, longe de nos desanimar nesta tarefa, confere a certeza que ele abençoará nossos esforços.

Desculpas "piedosas" (que consistem em uma tentativa errônea de compreender e se sujeitar à vontade de Deus) ou "teológicas" (um falso calvinismo) para a apatia e a indolência não são competíveis nem com a Bíblia nem com o Deus da Bíblia.

Como o personagem de Chico Buarque, também devemos ir até o fim - com a diferença que sabemos "pronde" que vamos.

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