quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

VOCÊ TEM ABUSADO DO PRECEDENTE DE ANA?

Utilizar um precedente histórico significa apelar a um fato passado para embasar uma atitude presente.

Na verdade, a história como um todo assume a função de servir como precedente à nossa realidade, no sentido de ser uma das fontes de consulta necessárias para a ação presente e construção do futuro.

Todavia, existem limites para o uso de um precedente histórico, limites estes que, se não forem respeitados, inevitavelmente gerarão abusos.

Por exemplo, utilizar o fato histórico de que os gregos realizavam as Olimpíadas como forma de culto a seus deuses como argumento teológico para a proibição de esportes é um abuso do fator histórico, por fazer uma analogia forçada que desconsidera os contextos diferentes em que a mesma atividade é exercida.

Quero aplicar o mesmo raciocínio à história bíblica de Ana, devido a alguns abusos que têm sido cometidos ao usarem-na.

O primeiro livro de Samuel, no capítulo primeiro, narra o nascimento do profeta: Ana, sua mãe, era amada por seu pai, Elcana. Porém, ele mantinha um relacionamento bígamo, sendo casado também com Penina que, embora não fosse amada como Ana, concedia filhos a Elcana.

A esterilidade era um fardo bastante difícil para as mulheres daquela época – e Penina sabia tirar proveito disso, humilhando Ana na tentativa de obter o favorecimento de Elcana.

Ao comparecer à reunião de adoração em Siló, para onde sua família peregrinava anualmente, Ana ora angustiada ao Senhor, pedindo que lhe desse um filho. Nesta ocasião ocorre o famoso incidente em que Ana, orando em silêncio, apenas mexendo os lábios, é confundida com uma bêbada pelo sacerdote Eli, que, posteriormente, a abençoa.

Ana teve sua oração atendida e o seu cântico de agradecimento (1.º Samuel 2.1-10) tornou-se uma referência histórica para os israelitas em suas orações.
Devido ao incidente ocorrido em Siló, onde o sacerdote Eli não compreendeu que Ana orava, e a repreendeu em um primeiro momento, a Igreja contemporânea também tomou esta passagem como um paradigma da incompreensão humana, agravada ainda mais pelo fato de ela ter sido exercida por um sacerdote.
Eli tornou-se, então, símbolo de insensibilidade e falta de compreensão. Muitos leitores da Bíblia, vítimas de desprezo, identificam-se facilmente com Ana, também identificando, com igual facilidade, os seus “Elis”.
Agora, convenhamos:
Não era inusitada a cena que Eli tinha diante de seus olhos em Siló?
Teria ele outra opção além de supor que Ana estava “mamada”, dada a bizarrice do que contemplava?
Devemos ter bem claro para nós que toda compreensão que o nosso próximo tiver acerca de nós (de nossas intenções, motivações, atitudes), por melhores que sejam suas intenções (e isto incluirá certamente aqueles a quem mais amamos e por quem somos mais amados) sempre será limitada. O motivo para tal fato é porque somente Deus é capaz de nos conhecer em nossa inteireza. Isto me leva a crer que, em seu sentido mais essencial, todo ser humano é um solítário – porque somente Deus o conhece e o entende plenamente.

Sendo assim, não faz sentido pretender (e exigir) que seres humanos de carne e osso como nós sejam capazes de nos discernir integralmente.
Por esta razão a transparência nos relacionamentos é um ingrediente vital para a vida em comum.
Quantas vezes as pessoas, tolamente, ressentem-se por não serem compreendidas apesar de não terem feito o menor esforço para que isto pudesse ter ocorrido.
Abusar do precedente de Ana é viver exigindo que todo ser humano possua uma bola de cristal para viver com você!
Não estou querendo dizer que não existam atitudes concretas de desprezo.
Apenas quero alertar você para o risco de tornar ainda mais dificultosas as já complexas relações humanas.
Não creio que Eli tivesse recursos para compreender a cena que se passava diante de seus olhos. Ana, de maneira sábia, colocou o sacerdote à par de tudo que estava ocorrendo, e pôde contar com seu apoio e solidariedade após ele ter compreendido o que se passava.

Portanto, analise suas dificuldades relacionais e verifique se você realmente tem sido vitima de desprezo ou se, por não ter se esforçado por fazer ser compreendido (a) por aqueles que vivem ao seu redor, tem utilizado mal a experiência da transparente Ana para se afundar em autopiedade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário