"Quase toda a suma de nossa sabedoria, que deve ser considerada a sabedoria verdadeira e sólida, compõe-se de duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Como são unidas entre si por muitos laços, não é fácil discernir qual precede e gera a outra. Pois, em primeiro lugar, ninguém pode olhar para si sem que volte imediatamente seus sentidos para Deus, no qual vive e se move, porque não há muita dúvida acerca de que não provenham de nós as qualidades pelas quais nos sobressaímos. Pelo contrário, é certo que sejamos senão a subsistência no Deus uno. Ademais, por esses bens, que gota a gota caem do céu sobre nós, somos conduzidos como que de um regato para uma fonte. Da perspectiva de nossa miséria, mostra-se melhor aquela infinidade de bens que residem em Deus. Especialmente essa ruína miserável em que nos lançou o erro do primeiro homem obriga-nos a olhar para cima, não só para que, em jejum e famintos, busquemos o que nos falta, mas também para, despertados pelo medo, aprendermos a humildade. Pois, como se encontra no homem todo um mundo de misérias, desde que fomos despojados do ornamento divino, uma nudez vergonhosa revelou-nos uma grande quantidade de opróbrios: é necessário que a consciência de cada um seja tocada pela própria infelicidade para que chegue ao menos a algum conhecimento de Deus. Assim, do sentimento de ignorância, vaidade, indigência, enfermidade, enfim, de depravação e da própria corrupção, reconhecemos que não está em outro lugar, senão em Deus, a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a perfeita confluência de todos os bens, a pureza da justiça, a tal ponto que somos estimulados por nossos males a considerar os bens divinos. E não podemos aspirar seriamente a isso antes que comecemos a nos degradar de nós mesmos. Com efeito, que homem descansa satisfeito em si mesmo? Quem não repousa enquanto é desconhecido para si, isto é, enquanto contente com seus dons e ignorante ou esquecido de sua miséria? Por isso, o reconhecimento de si não apenas instiga qualquer um a buscar a Deus, mas ainda como que o conduz para a mão para reencontrá-lo.
Consta, pelo contrário, que o homem jamais chega a um conhecimento puro de si sem que, antes, contemple a face de Deus, e, dessa visão, desça para a inspeção de si mesmo. Assim é que, sendo a soberba inata a todos nós, sempre nos vemos como justos, íntegros, sábios e santos, salvo se, por argumentos evidentes, sejamos convencidos de nossa injustiça, imundície, estupidez e impureza. Contudo, não somos convencidos disso se voltarmos os olhos exclusivamente para nós mesmos e não também para Deus, que é a única regra da qual se deve exigir tal juízo. Deveras, porque somos todos propensos por natureza à hipocrisia, uma frágil aparência de justiça nos satisfaz plenamente, em vez da própria justiça. E, porque nada se mostra entre nós ou ao nosso redor que não seja manchado por alguma obscenidade, enquanto mantemos nossa mente dentro dos limites da impureza humana, o que é um pouco menos imundo agrada-nos como se fosse muito puro. Do mesmo modo, o olho para o qual nada se apresenta senão a cor negra, julga ser muito branco aquilo que, quanto à brancura, está todavia um tanto apagado ou não pouco encardido. E mais: pelos sentidos corporais, pode-se discernir, ainda mais adequadamente, o quanto nos equivocamos no julgamento das virtudes da alma. Pois, se, ao meio-dia, dirigimos a vista para a terra ou para o que está à nossa frente, parecemos providos de um olhar muito vigoroso e perspicaz; mas, quando erguemos a vista para o sol e o contemplamos com olhos atentos, aquela força, que era particularmente vigorosa na terra, logo é ofuscada e confundida por um brilho tamanho que somos obrigados a reconhecer que nossa acuidade na observação das coisas terrestres, quando voltadas para o sol, é mera estupidez. Assim também acontece na consideração dos nossos bens espirituais. Enquanto não olhamos para além da terra, estamos contentes com a nossa própria justiça, sabedoria e bela virtude, lisonjeamos a nós mesmos com doçura, e apenas não nos consideramos semideuses. Mas, se de uma vez, começarmos a elevar nosso pensamento em direção a Deus e a sopesar qual e quão exata é a perfeição de Sua justiça, sabedoria e virtude, à qual frequentemente devemos nos conformar, o que antes agradava sob o falso pretexto de justiça sujar-se-á de pronto como a mais alta injustiça, o que impunha maravilhosamente o título de sabedoria, recenderá a tolice extrema; o que levava à sua frente a face da virtude será acusado de miserabilíssima impotência, a tal ponto corresponde mal à pureza divina o que em nós é visto talvez como absolutamente perfeito".
Nenhum comentário:
Postar um comentário