Movido mais pelo dever do que pelo prazer, inicio esta nova série, cujo objetivo principal é debater e desmistificar alguns conceitos que circulam pela igreja e se tornaram lugar comum, seja pela má interpretação de alguns textos bíblicos ou pela força do hábito.
A rejeição do pedobatismo (batismo de crianças) pela grande maioria das igrejas evangélicas brasileiras, não as levam a agir de forma indiferente com os recém-nascidos - como estas igrejas entendem que o batismo bíblico sempre é um ato voluntário requerido pelo próprio batizando)*, não é ministrado o batismo aos bebês, mas eles são apresentados ao Senhor.
Este ato, realizado dentro da própria liturgia do culto, envolve:
- Gratidão a Deus pela nova vida;
- Exortação aos pais para que instruam a criança no temor do Senhor**;
- Oração intercessória pela criança e pelos pais, para que sejam aptos a realizar tal tarefa.
A cerimônia de apresentação traz muita alegria para a igreja e para os familiares do bebê.
O problema é a base teológica comumente utilizada para tal ato:
Não raro os pastores que ministram a apresentação do bebê dizem que realizam o ato seguindo o modelo do Senhor Jesus, que também foi apresentado no templo (sendo muito comum a leitura da passagem correlata de Lucas 2.22).
É justamente esta transposição que é inadequada - a apresentação do Senhor Jesus no templo é um ato totalmente distinto da apresentação de bebês praticada pela igreja brasileira contemporânea.
Jesus foi apresentado no templo, em cumprimento à exigência da lei mosaica de consagração (ou resgate) dos primogênitos (Êxodo 13.1, 11-14; Levítico 12.1-8). Sendo assim, a apresentação do Senhor Jesus:
- Era uma disposição cerimonial da lei judaica (veja Gálatas 4.4);
- Era um ato estendido a todos os primogênitos judeus (ou seja, Lucas 2.22-24 não cria um novo paradigma);
- Era um ato que envolvia a circuncisão (Levítico 12.3);
- Era um ato que exigia a purificação cerimonial da mãe (Levítico 12.1,4);
- Exigia a apresentação de dois animais como sacrifício (um como holocauto pelo pecado e outro como oferta para o pecado), que poderiam ser um cordeiro e uma pomba ou rolinha ou, no caso das famílias pobres, duas pombas ou rolinhas (como foi o caso da família de Jesus – veja Levítico 12.6-8 e Lucas 2.24).
Se continuarmos insistindo que a apresentação contemporânea de crianças segue os mesmos moldes da apresentação de Jesus no templo, então:
- Estaríamos afirmando a vigência da Lei cerimonial mosaica, com seus ditames sobre pureza cerimonial e sobre a circuncisão (Gálatas 3.23-25);
- Meninas não poderiam ser apresentadas no templo, e nem os filhos não-primogênitos;
- Algum tipo de oferta/sacrifício teria de ser exigido dos pais – algo inadmissível diante da Nova Aliança e do sacrifício perfeito de Cristo (Hebreus 9.11-15).
Sendo assim, como devemos compreender o ato de apresentar a Deus os recém-nascidos, intercedendo pelo seu bem-estar e de sua família?
Simplesmente assim: como um ato de intercessão pelo bem-estar da criança e de sua família!
As coisas não perdem seu valor por se revestirem de simplicidade.
Sendo assim, continuemos apresentando nossos filhos ao Senhor – mas com uma compreensão mais adequada do ato que estamos realizando***.
* Uma excelente abordagem das diversas visões acerca do batismo dentro da cristandade encontra-se no livro “Águas que Dividem”, de Donald Bridge e David Phypers. Confira em http://www.editoravida.com.br/loja/product_info.php?products_id=198
** A cerimônia de apresentação é aberta a famílias evangélicas e não-evangélicas. Geralmente o ministro pergunta aos pais se estes se comprometem a criar a criança nos caminhos do Senhor. Tenho muita dificuldade, porém, quando este compromisso é solicitado a uma família não-evangélica – afinal, como aqueles que não seguem o Evangelho vão ensinar seus filhos a fazê-lo? Em minha opinião, tal compromisso não deveria ser solicitado, devendo ser substituído por uma exortação para que os pais aceitem a Cristo – o que, certamente, irá capacitá-los a construir um lar melhor e assim educarem seus filhos no temor do Senhor.
*** Particularmente, creio que leituras mais adequadas para a ocasião são: Deuteronômio 6.4-9; Marcos 10.13-14 ou Efésios 6.4.