Exegese é o processo de extrair informações do texto bíblico, enquanto a hermenêutica consiste na interpretação destas informações.
Podemos dizer que a exegese está para o ato de garimpar, enquanto a hermenêutica seria a análise do minério.
E a Teologia, enquanto construção de conhecimento sobre Deus, seria o produto final, a jóia obtida, dentro do raciocínio da ilustração empregada, por ser resultado direto da exegese e hermenêutica utilizadas no trato com o texto bíblico.
Uma das mais populares leituras de 2 Reis 4.23-26 é a que interpreta as palavras da sunamita, que acabara de perder seu filho, como uma grande expressão de fé.
«Vai tudo bem», disse ela a seu esposo e a Geazi, após a tragédia.
Por conta disso concluiu-se que, para um homem ou mulher de fé, sempre "está tudo bem", independente dos infortúnios que possa estar sofrendo. E não poucas vezes ouvi eloquentes exortações no sentido de que assim deveriam se portar os fiéis.
(Desconfio, inclusive, que tal interpretação teria sido a base do hino 52 da Harpa Cristã.)
Os fatos narrados na própria passagem, contudo, não apóiam tal interpretação.
Aquela mulher se expressara desta forma porque não podia compartilhar o que sentia com seu marido (talvez para não preocupá-lo), nem com Geazi (que não era confiável).
Reação totalmente diferente ela teve diante de Eliseu, homem de Deus: ela lançou-se sob seus pés e deu vazão à sua dor.
"Chegando ela, pois, ao homem de Deus, ao monte, abraçou-lhe os pés. Então, se chegou Geazi para arrancá-la; mas o homem de Deus lhe disse: Deixa-a, porque a sua alma está em amargura, e o SENHOR mo encobriu e não mo manifestou". (2º Reis 4.27)
Ou seja, “vai tudo bem” nem sempre é sinônimo de grande fé, mas de grande solidão.
Não ignoro que, no sentido geral, todas nossas dificuldades devem ser colocadas diante da cruz (Paulo ensinou isto em 2 Coríntios 4.16-18) – e realmente elas tornam-se pequenas diante dela e da certeza do amor eterno de Deus (como certo irmão expressou, de forma comovente, em oração “Senhor, somente a salvação já estaria bom demais para nós”, mas acrescentou “... mas ainda assim, venho a Ti buscar uma vitória, porque estou necessitado”).
Ou seja, Deus sabe de nossas carências. Não precisamos fingir que não dói. Ele sabe.
Bancar o “Superman” religioso contribui apenas para minar a intimidade do relacionamento com Deus - e também com os outros.
Sim, pois a Igreja é uma comunidade que deve prestar apoio mútuo (Gálatas 6.2), e isto se torna impossível em um ambiente onde não haja a transparência necessária para expressar o que se passa no coração – seja por uma impostura teológica errônea, ou pela falta de credibilidade dos cristãos.
Este é o principal problema com esta má interpretação do episódio da sunamita:Transforma a fé em bravata, artificializando relacionamentos.
A maneira sábia como Eliseu acolheu aquela mulher pode nos orientar sobre como ajudar a ficar bem aqueles que não estão:
- Ele se mostrou acessível, permitindo que ela abraçasse seus pés;
- Ele não recriminou a sunamita por vê-la naquele estado (não falou coisas como "que é isso, mulher, isso não é coisa de crente!" - e chavões do gênero);
- Ele a protegeu, não permitindo que o incompreensivo Geazi a perturbasse;
- Não menosprezou sua dor;
- Não mistificou desnecessariamente a situação ("a sua alma está em amargura, e o SENHOR mo encobriu e não mo manifestou");
- Prestou ajuda prática (como veremos nos versículos 28 a 37)
Certamente isto é mais eficaz, por ser bíblico, que proferir e ensinar a proferir bravatas.
Muito bom Pr. Vitor ... concordo plenamente.
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